Eclipse

Foste só uma musa de um poeta,
E como tantas outras de tantos outros,
Já te coube inspirar o verso
E ao verso, aspirar a ti.
A palavra era o reflexo do desejo;
O desejo, o reflexo de tua imagem.
A natureza era cúmplice muda:
Era chuva, era seca,
Era céu, era suja,
Era cheia, era crua,
Era um vulto…
Que vulto?
Teu vulto.
Mas agora a poesia é outra;
O brilho calou, o ícone está quebrado.
Apenas um encanto passado de um passado encantado.
Um novo presente, por fim.

Miragem

Inesperada feito a lua à tarde;
Um clarão azul de olhos límpidos.

Vivo vento.
E as árvores floridas e licenciosas
Erguiam-se silenciosas da terra ao céu.

Ao instante, foi concedida uma breve eternidade.
Ao peito, a emoção versificada.
Ao encontro, a cumplicidade de um sorriso.

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O Velhinho

Tenho a doença; a febre me consome.
Minhas calças usadas e largas, começando a rasgar,
Minha barba tosca
E meus óculos tortos e meus olhos também…
Sou um cão velho e reumático, cheirando
E chiando tosses asmáticas,
Enquanto falo sozinho e penso duas vezes antes de falar.
Carrego carregadas nuvens de poeira
Em pesadas dores de costas
E que deixam um gosto acre de coisa velha e ruim,
Um bafo morno de cinzeiro fumegante e moribundo…
Vencido há apenas algumas horas,
Imerso em cenários delirantes
Embalados pelo meu cheiro de pele usada,
Sinto os sedimentos de sujeira
E as migalhas mofadas de imundice se aprofundando nos sulcos secos
De meus pés, de minhas mãos e de meus lábios.
E com o descuido de um pano de chão,
Acumulo aromas exóticos e cores incertas,
Tornando-me cada vez mais irreconhecível.
Eventualmente desapareço,
Após incontáveis transfigurações da Peste,
Assumindo, por fim, seu vulto e sua invisível onipresença.
Disperso,
O Velhinho se foi.

Fração

Rostos amanhecidos, repousando todos
No instante límpido de meu verso.
Ah, mundo, pareces tão distante através
De meus telescópicos olhos invertidos…
Minha voz nada mais é
Que um sussurro quase inspirado
E um quase consumado suspiro
Embaçando minhas lentes com imagens turvas de poesia.

Deito-me contigo, inesgotável mundo;
Deita-me tudo…

Retrato de Bolso

Tinha um cara lá usando pijamas e falando um par de coisas sem sentido, como se ainda estivesse sonhando. “Me vê outro trago” falei pro garçom, enquanto duas belezas entravam entre assobios de machos e fêmeas perto da mesa de sinuca. Então, um casal levantou e começou a dançar, sem tirar os olhos um do outro, sorrindo só com o canto da boca, ignorando o resto. “Ele vai se dar bem” ouvi alguém dizer; “Ela sabe dar bem” ouvi alguém responder.

E de repente, aconteceu um silêncio, uma furtiva calmaria dos espíritos trôpegos. “Ouçam a música” sussurravam sem falar… Ou também podia ser só eu. E o garçom chegou com o trago.

– Espera aí.

E logo partiu novamente. O sonho do cara de pijamas parecia ser um fato consumado de alguma espécie, original e comum a todos. Fui até ele. Fiquei perto, encostado numa coluna suja, logo atrás do grupo que ouvia suas palavras – nada messiânico, só um grupo de quatro camaradas dando ouvido a uma pessoa diferente. De vez em quando riam, divertidos.

– O quinto! – O Pijama falou comigo – Responda: o baixo ressoa em harmonia, do alto as garças voam norte, divergir; credo cruz credo qual credo cruz credo eu enfim? Retomar, fortuna.

Putz!

– A guitarra cintila a melodia, o gato dorme sob a mesa, encontrar; cruz credo cruz nesta cruz credo eu. Concluir, destino.

– Ah! – Exclamou maravilhado – Honesto feito o quê?

– Feito o céu – Respondi ensolarado.

Pijama olhou pra mim com uma expressão mui franca e querida; retribuí com um sonoro sorriso. Os quatro camaradas olhavam com ares de deslumbre, incapazes de compreender a mágica dialógica que ocorrera diante de seus olhos. Havia uma garota entre eles. Pisquei pra ela e parti.

“Então havia um sol lá atrás…” pensei cá comigo, enquanto saía de mãos no bolso e respirando plenamente.

A rua se produziu à minha frente em outro ritmo, outro espectro de cores elétricas.

– Você nem me respondeu.

– Eu sei, queridinha… Mas ando tão cheio de coisa pra fazer que acabo me esquecendo.

– Você não gosta de mim.

– Ó, nem começa que não é assim… Você sabe.

Ele tenta o bote. Ela afasta o rosto, franzindo.

– Você sabe.

Ele insiste assim e ela deixa.

Lírico!

E o vento bateu frio na cara enquanto caminhei noite adentro…