Dédalo

O olhar descampado,
As palavras descabidas,
A cabeça acabada.

E quanto silêncio agora que o dia apaga,
Que as folhas caem na noite calada –
Quanta estrada vazia, quantas vagas lembranças,
Quanta coisa passada…
Estas luzes frias e suas janelas cansadas,
As brisas tristes que não carregam nada
A distante revoada
E a hora que bate e bate atrasada.
Quanta volta, por fim,
Até outra madrugada
Para ver as mesmas incertezas renovadas
Revisitar a obra inacabada
E, de corda esticada,
Encarar mais uma rodada.

Tanta trova para falar o dito
E para guardar o secreto…
Tanto rearranjo, tanto desacerto.

Falta espaço.
Sobra infinito…

Quimeras

A senhora do outro lado da rua não sabe quem sou.
Não sabe de onde vim,
Não sabe para onde vou,
Não sabe se, um dia,
Amei ou feri
Chorei ou sorri
Enfrentei ou fugi…
Não sabe se já tive esperança
Ou se, à espera, deixei as coisas ruir.
A senhora do outro lado da rua me observa apenas.
E, nesse instante de perguntas infindas,
Antes que pudesse me perguntar o que sabia dela,
Percebi que nada sabia de mim.

Jejum

Há alguém no quarto ao lado. Desde semana passada comecei a ouvir passos e lamentos. Quando ando pelo corredor da sala ao banheiro, ouço pela porta. Por vezes, para, daí tenho que atentar meus ouvidos e consigo ouvir a respiração soluçante com grunhidos graves.

Amanhã, Lucinda vem visitar. Diz que quer comer bolinhos de bacalhau. Talvez ela também ouça e tire suas próprias conclusões. Mas no momento estou cansado. Quero dormir. Minha cama está áspera, queria trocar seus lençóis, mas eles estão no quarto ao lado. E não quero interromper, sabe? Há alguém no quarto ao lado.

Uma tarde, fiquei impaciente. Estava tentando aprender uma marcha no piano de minha avó e do nada começo a ouvir esses passos. Do nada. Passos barulhentos e raivosos. Meu vizinho seu Celso era velho e há tempo não era mais capaz de se locomover, os olhos vidrados em constante espanto sobre qualquer coisa que sua cuidadora, que tinha cara de jacaré, colocasse à sua frente. Mas o barulho não vinha de lá, vinha do quarto ao lado, o da porta de madeira antiga com a gelosia. Tinha um cheiro esquisito. Poxa, mas esse barulho, assim… Não dá. Fechei a partitura e fui ao banheiro olhar meu rosto no espelho. Fiquei me olhando, mexi meu cabelo, estourei dois cravos, tirei minha camiseta e fiquei me olhando. Sorria com o canto da boca, ficava sério, mexia no cabelo. Os passos martelando o fundo, cada vez mais altos, acompanhados de um ou outro berro incompreensível. Eu arregalo os olhos, espremo a boca. Arfando, sorrio para o espelho. Os olhos brilhando.

Lucinda está atrasada, era para ter chegado há uma hora. O pêndulo do relógio bate de um lado para o outro contra a parede ocre. Os bolinhos de bacalhau estão no forno queimando aos poucos. Mas Lucinda não chega e os lamentos ondulam com dor. Esfrego os dedos da mão entre os dedos do pé e os levo ao nariz. O telefone toca e Lucinda diz que está a caminho, está vindo, deixa o bolinho no forno. Vai queimar. Vai queimar. Deixa no forno, viu?