Há alguém no quarto ao lado. Desde semana passada comecei a ouvir passos e lamentos. Quando ando pelo corredor da sala ao banheiro, ouço pela porta. Por vezes, para, daí tenho que atentar meus ouvidos e consigo ouvir a respiração soluçante com grunhidos graves.
Amanhã, Lucinda vem visitar. Diz que quer comer bolinhos de bacalhau. Talvez ela também ouça e tire suas próprias conclusões. Mas no momento estou cansado. Quero dormir. Minha cama está áspera, queria trocar seus lençóis, mas eles estão no quarto ao lado. E não quero interromper, sabe? Há alguém no quarto ao lado.
Uma tarde, fiquei impaciente. Estava tentando aprender uma marcha no piano de minha avó e do nada começo a ouvir esses passos. Do nada. Passos barulhentos e raivosos. Meu vizinho seu Celso era velho e há tempo não era mais capaz de se locomover, os olhos vidrados em constante espanto sobre qualquer coisa que sua cuidadora, que tinha cara de jacaré, colocasse à sua frente. Mas o barulho não vinha de lá, vinha do quarto ao lado, o da porta de madeira antiga com a gelosia. Tinha um cheiro esquisito. Poxa, mas esse barulho, assim… Não dá. Fechei a partitura e fui ao banheiro olhar meu rosto no espelho. Fiquei me olhando, mexi meu cabelo, estourei dois cravos, tirei minha camiseta e fiquei me olhando. Sorria com o canto da boca, ficava sério, mexia no cabelo. Os passos martelando o fundo, cada vez mais altos, acompanhados de um ou outro berro incompreensível. Eu arregalo os olhos, espremo a boca. Arfando, sorrio para o espelho. Os olhos brilhando.
Lucinda está atrasada, era para ter chegado há uma hora. O pêndulo do relógio bate de um lado para o outro contra a parede ocre. Os bolinhos de bacalhau estão no forno queimando aos poucos. Mas Lucinda não chega e os lamentos ondulam com dor. Esfrego os dedos da mão entre os dedos do pé e os levo ao nariz. O telefone toca e Lucinda diz que está a caminho, está vindo, deixa o bolinho no forno. Vai queimar. Vai queimar. Deixa no forno, viu?